Sobre as dificuldades em ser coerente

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Costumo dizer que o mundo seria muito melhor se as pessoas fossem minimamente coerentes. Se elas pensam que “bandido bom é bandido morto”, que pensassem isso para todos os tipos de crime, inclusive aqueles cometidos pelos políticos aos quais se alinham; Se prezam pela sororidade, que compreendessem que há desafios específicos para algumas mulheres, ao invés de pressuporem que estas são acomodadas; Se são gays ou afirmam-se simpatizantes, que parassem de afirmar que “gay afeminado só quer aparecer”; Se é religioso, que amasse realmente os próximos como a si mesmo. Enfim, a lista de incoerências é infinita, tanto para pessoas de direita quanto aquelas que se consideram de esquerda…

Ter pensamentos e ações em harmonia obviamente não é tarefa fácil. A vida cotidiana sempre coloca demandas de posicionamentos e ações que podem – e normalmente o fazem – bagunçar muitos de nossos pressupostos. Algumas ideias muito fáceis de serem apoiadas por vezes parecem não se adequar mais aos problemas cotidianos. Mas ao menos tentar ser coerente já é um primeiro passo. Isso pode fomentar uma postura de aprendizado. Na qual as críticas recebidas podem ajudar a problematizar nossas posições, ao invés de imporem justificação e defesa necessariamente.

Mas para além dessa discussão, as pessoas não se importam muito em ser incoerentes. Ou pior, não veem a própria incoerência e, quando esta é apontada, reclama da “patrulha ideológica” antes mesmo de problematizar suas próprias ações. Obviamente que dar satisfação a todo o momento é um porre, mas é preciso pensar se as questões colocadas não fazem algum sentido. Porém, é necessário ressaltar que só é criticada/o quem se posiciona, e isso já é muito mais do que a maioria das pessoas faz, em suas posturas acomodadas e silenciosas.

Mas a incoerência me incomoda mais em alguns grupos do que em outros. Dependendo do caso, tento ter a postura mais pedagógica possível. Em outros momentos, apenas me afasto da pessoa para não parar de amá-la. Mas confesso que se há um lugar no qual a aparente incoerência me mobiliza mais, este lugar é a Academia. Pessoas que estudaram anos e anos e acreditam em meritocracia, ou outros que usam o trabalho sociológico apenas para criar redes de relações e influências. Estas são pessoas que me sugeriam bastante incoerência.

Mas hoje vejo a forte coerência dessas ações.

Por isso o título deste texto deveria ser: “minha dificuldade em entender as coerências das pessoas”. Antes de apontar a incoerência destas, se eu tivesse me perguntado: “O que esta pessoa quer no mundo acadêmico?”, poderia ter antecipado coisas como: “para ter poder”, ou “para ganhar dinheiro fingindo que ajuda o mundo”. Aí a incoerência desaparece, porque é mais fácil ver as estratégias que as pessoas se utilizam para conseguir o que querem. Só que eu tenho certa piedade dessas pessoas, porque na imensa maioria das vezes, nada mais conseguirão do que manifestar pequeno poder. A vontade de ter mais autoridade é infinita, a fantasia de que esse poder realmente existe é ainda mais! Boa sorte para quem quiser jogar esse jogo.

Por isso penso que há uma certa “esquerda individualista” no mundo acadêmico. Não quero criar um novo conceito aqui, mas se há coisas realmente incoerentes para mim são as posturas ditas de esquerda e o individualismo. Sei que ser de “esquerda” ou “direita” dependerá de épocas e contextos e, por isso, essas categorias não são imutáveis, mas acredito que a esquerda invariavelmente coloca a luta pela dignidade coletiva, a partir da participação popular, como objetivo. Nesse sentido, como alguém pode ser de esquerda e, ao mesmo tempo, individualista? Eu não tenho uma resposta pronta, mas acho que esta passa pela centralidade que a construção de carreira acadêmica tem em relação aos objetivos de manejar a sociologia como forma de problematizar o mundo. Há um trecho da Heloisa Helena T. de Souza Martins que gosto muito: “Para o pesquisador, com muita frequência, o mais importante é a pesquisa a ser feita, e os outros são vistos como informantes, ou seja, devem estar a serviço dele para lhe fornecerem os dados que lhe são fundamentais – “fundamentais”, na verdade, para a sua carreira e não para a vida daquele grupo ou para os indivíduos que dele fazem parte”.

O meu mundo está cheio de pessoas assim, que afirmam trabalhar em prol de uma causa, na apenas almejam prestígio profissional. E tenho me esforçado muito para ficar bem longe delas.

Referências Bibliográficas
MARTINS, Heloisa H. T. de S. Metodologia qualitativa de pesquisa. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.2, p. 289-300, maio-agosto, 2004.

*Imagem do texto oriunda do filme “O Médico e o Monstro” (Dr. Kekyll e Mr. Hyde), de Rouben Mamoulian (1931).

Um comentário sobre “Sobre as dificuldades em ser coerente

  1. Olá, Juliana! Parabéns pelo texto, nossos pensamentos convergem bastante acerca do que foi exposto.

    Também desenvolvemos pesquisas correlatas (sim, fuxiquei seu lattes).

    Se possível, você poderia me enviar um e-mail? Gostaria de tirar algumas dúvidas sobre processos seletivos com você :~

    Abraços!

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