Polinter (Dafne Capella, 2012, 56′) só por ser um filme de prisão premiado na Mostra Competitiva da 9ª Mostra Cinema e Direitos Humanos no Hemisfério Sul (Média-Metragem) já chamaria minha atenção. Ser um filme dirigido por uma mulher só aumentaria a expectativa. Mas além de tudo isso, Polinter se tornou, a meu ver, um grande filme sociológico para se compreender o caos produzido pelo Estado dentro do sistema penitenciário.
Vale lembrar, Polinter é a Polícia Inter Estadual, um departamento que administra as carceragens da Polícia Civil nos estados. No caso do filme, Capella filma a Polinter do Rio de Janeiro.
Assim como qualquer pesquisa de campo realizada dentro de prisões no Brasil, deve-se ter uma rede de contatos, uma preocupação ética e uma postura política adequada, a fim de conseguir uma autorização para estar nesse ambiente (ALMEIDA, 2010; GODOI, 2015; BIONDI, 2009; RAMALHO, 2008, dentre tantos outros). É comum vermos trabalhos que problematizam os limites e potencialidades de sua entrada em campo, já que, a partir de uma dada autorização, deve-se comportar da forma que a burocracia considera adequada. Só o questionamento do que pode ser “adequado” numa pesquisa do tipo já valeria um livro, mas todos aqueles que pesquisaram instituições totais sabem do que estou falando. É sempre um ambiente tenso, no qual o pesquisador deve, a todo o momento, problematizar sua situação, sua postura e atitudes, já que as portas do campo podem se fechar de uma hora para outra.
Acredito que Capella também encarou essas dificuldades para produzir Polinter. A diretora trabalhou como fotógrafa na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e frequentemente acompanhava a Comissão de Direitos Humanos em visitas às carceragens da Polinter , o que lhe forneceu contatos para a realização do filme. O filme acaba por responder à uma pergunta recorrentemente colocada nos meios de comunicação: “Se prende pouco no Brasil?”. Segundo Capella, obviamente não. Ao contrário: se prende muito, mas apenas algumas parcelas de nossa população. Trata-se do velho problema da seletividade penal, que é potencializada em sociedades com forte desigualdade social.
Mas o que me chama mais atenção no filme é a questão da gestão dos ilegalismos, em detrimento da noção de repressão da criminalidade. Segundo Alessandra Teixeira (2012), inspirada em Michel Foucault, o termo gestão permite desvelar a lógica do sistema penal como um instrumento para gerir diferenciadamente as ilegalidades, não para suprimi-las a todas. Segundo a autora, a prisão não se apresenta como um instrumento para suprimir ilegalidades, mas para distribuí-las, gerenciá-las focando apenas sobre uma espécie delas. É possível dizer então que tal processo produz delinquência, ou invés de reprimi-la. A partir do momento em que o Estado rotula determinada prática como delinquência, em detrimento de outras (o clássico caso de crime de colarinho branco, que nunca é acessado pelo sistema de justiça), está também atuando politicamente, escolhendo determinada práticas (e consequentemente, grupos) para prender, enquanto outros ficam de fora.
Ao ver neste filme a quantidade de pessoas mobilizadas para manter outras pessoas presas me faz lembrar a grande quantidade de dinheiro mobilizado para tal fim, sem que a sociedade brasileira se torne mais segura. Muito pelo contrário, segregar ajuda a construir um grupo segregado e unido, dando força inclusive para o que comumente se chama de “crime organizado” ou “facções criminosas” (Dias, 2011; Mingardi e Vinuto, 2013).
Além disso, o filme indica a falência do sistema penitenciário, calcado na seletividade e na gestão dos ilegalismos, evidenciando a impossibilidade de gerenciar um número tal alto de pessoas rotuladas como criminosas. O recrutamento de pessoas oriundas das classes sociais mais baixas, que comete majoritariamente ações consideradas como crime patrimonial, vem aumentando no mundo inteiro, como nos lembra David Garland (1993). Esse fortalecimento do pensamento punitivo, uma hora ou outra, vai se mostrar impossível. Fico me perguntando quando é que o sistema vai explodir. Para mim, principalmente depois de assistir Polinter, é só questão de tempo.
Referências Bibliográficas:
ALMEIDA, Bruna Gisi M. de. A experiência da internação entre adolescentes: práticas punitivas e rotinas institucionais. Dissertação (Mestrado em Sociologia). São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2010.
BIONDI, Karina. Junto e misturado: imanência e transcendência no PCC. São Carlos, , Universidade Federal de São Carlos, 2009.
DIAS, Camila N. Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista. Tese (Doutorado em Sociologia). São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2011.
GARLAND, David. Punishment and Modern Society: a study in social theory. Oxford: Oxford University Press, 1993.
GODOI, Rafael. Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos. Tese (Doutorado em Sociologia). São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2010.
MINGARDI, Guaracy; VINUTO, Juliana. Tráfico de drogas e organizações criminosas. In: MINGARDI, Guaracy (org). Políticas de segurança: os desafios de uma reforma. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2013.
RAMALHO, José R. Mundo do crime: a ordem pelo avesso. Biblioteca Virtual de Ciências Humanas do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. Acesso em http://books.scielo.org/id/4dp27.
TEIXEIRA, Alessandra. Construir a delinquência, articular a criminalidade: um estudo sobre gestão dos ilegalismos na cidade de São Paulo. Tese (Doutorado em Sociologia). São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2012.